Escolha ocorreu na mesma data em que, há 56 anos, o AI-5 consolidou a repressão no país, simbolizando hoje o avanço da democracia no ambiente universitário.
Por Xisto Souza Júnior*
Campina Grande, 14 de dezembro de 2024, Na manhã de ontem, 13 de dezembro de 2023, o colegiado pleno da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) reuniu-se para deliberar sobre a lista tríplice que será enviada ao Ministério da Educação (MEC) para a escolha do novo reitor. A votação ocorreu de forma transparente e democrática, um contraste marcante em relação à mesma data há 56 anos, quando foi decretado o Ato Institucional nº 5 (AI-5), um dos mais repressivos e autoritários capítulos da ditadura militar brasileira. A coincidência histórica impõe uma reflexão profunda sobre o papel das universidades públicas no fortalecimento da democracia e sobre os desafios que persistem em relação à autonomia universitária no Brasil.
Durante o regime militar (1964-1985), a intervenção governamental nas universidades foi prática comum, com reitores sendo nomeados diretamente pelo governo, sem qualquer consulta à comunidade acadêmica. O AI-5, promulgado em 13 de dezembro de 1968, representou o ápice da repressão, suspendendo direitos políticos, fechando o Congresso Nacional e institucionalizando a censura e perseguição a opositores do regime. Neste contexto, as universidades tornaram-se alvos preferenciais, pois eram reconhecidas como espaços de resistência, reflexão crítica e mobilização social. Professores foram afastados, estudantes perseguidos e reitores destituídos ou nomeados conforme os interesses do governo federal, numa tentativa de silenciar as vozes críticas.
Cinco décadas depois, a democracia brasileira reconquistada trouxe importantes avanços no campo da autonomia universitária, assegurada pelo artigo 207 da Constituição Federal de 1988, que estabelece que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”. Parte dessa autonomia inclui o direito das instituições de ensino superior de escolherem seus dirigentes por meio de processos democráticos que envolvem a participação da comunidade acadêmica – docentes, técnicos e estudantes.
Entretanto, nos últimos anos, essa autonomia foi colocada em xeque com a recorrente intervenção do governo federal na nomeação de reitores em universidades federais. Em diversas ocasiões, o presidente da República ignorou o resultado das consultas internas e escolheu nomes que não foram os mais votados pela comunidade acadêmica. Entre 2019 e 2022, de acordo com dados da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), 26 universidades federais tiveram reitores nomeados que não eram os primeiros colocados nas listas tríplices. Essa prática, embora legal, tem sido amplamente criticada por ferir o espírito democrático e desrespeitar a vontade expressa das comunidades universitárias.
O caso da UFCG, portanto, acontece em um momento emblemático, que resgata a memória da resistência ao autoritarismo e reafirma a importância de fortalecer os processos democráticos nas universidades. O fato de a votação ter ocorrido de forma transparente, com os 44 conselheiros sendo identificados nominalmente, reflete a maturidade institucional e o compromisso com os princípios democráticos. Dos votos apurados, 43 foram destinados ao professor Camilo Farias, enquanto Antônio Fernandes recebeu apenas um voto, e Angélica não obteve nenhuma indicação. O resultado demonstra uma escolha consolidada pela ampla maioria do colegiado e reforça o respeito à representatividade acadêmica.
No contexto das universidades públicas, a consulta à comunidade é um exercício fundamental para a construção de uma gestão participativa e legítima. A indicação de reitores que representam a vontade da comunidade acadêmica fortalece a confiança institucional, promove o diálogo e assegura a continuidade de projetos pedagógicos e administrativos alinhados com as demandas da universidade. A intervenção na escolha dos dirigentes, por outro lado, não apenas gera desconfiança, mas também cria um ambiente de instabilidade e fragiliza a autonomia universitária, um dos pilares da educação superior no Brasil.
Entretanto, os desafios não foram completamente superados. A nomeação de reitores que não representam a vontade da comunidade acadêmica é um resquício preocupante de práticas autoritárias que remetem ao período militar. Este cenário exige vigilância constante e mobilização da sociedade em defesa da autonomia universitária. Mais do que uma questão administrativa, trata-se de um compromisso com os valores democráticos e com a construção de instituições públicas fortes, transparentes e independentes.
O caso da UFCG, neste 13 de dezembro, é simbólico não apenas pela coincidência com o aniversário do AI-5, mas também pelo exemplo de como as universidades devem funcionar em uma democracia. A realização de um processo eleitoral sem intercorrências, com ampla participação dos conselheiros, é um sinal de que a democracia interna na instituição está consolidada e deve ser respeitada. A lista tríplice será encaminhada ao MEC, e espera-se que o governo federal respeite a escolha da comunidade universitária, nomeando o candidato mais votado, professor Camilo Farias, como novo reitor da UFCG.
Este episódio também resgata a importância do papel das universidades públicas como guardiãs da democracia e da pluralidade. Ao longo da história, as universidades têm sido espaços de resistência, inovação e transformação social. A defesa da autonomia universitária é, portanto, um compromisso com a liberdade de pensamento, com a produção científica independente e com a formação de cidadãos críticos e conscientes.
Atualmente, o Brasil conta com 69 universidades federais, distribuídas em todas as regiões do país. Juntas, essas instituições desempenham um papel crucial na promoção do ensino, da pesquisa e da extensão, contribuindo diretamente para o desenvolvimento nacional. A garantia de processos democráticos internos, como a escolha de reitores, é fundamental para que essas universidades continuem cumprindo sua missão com excelência e independência.
Neste 13 de dezembro, a UFCG reafirma o compromisso com a democracia e com a autonomia universitária, em um gesto que contrasta com o autoritarismo do passado. O resgate da memória histórica é essencial para que os erros do passado não se repitam e para que a sociedade valorize e defenda as conquistas democráticas. A experiência recente demonstra que a luta pela democracia é contínua e exige vigilância permanente. As universidades públicas, como a UFCG, permanecem na linha de frente dessa luta, promovendo a educação, o conhecimento e a cidadania.
Por fim, a história deste dia nos ensina que a democracia não é um estado permanente, mas um processo que precisa ser construído e fortalecido a cada momento. A lista tríplice da UFCG, definida de forma transparente e legítima, é um exemplo vivo de que a democracia está em pleno funcionamento na universidade. Que este 13 de dezembro sirva como um lembrete da importância de defender a autonomia universitária e os valores democráticos, assegurando que o passado autoritário nunca mais encontre espaço no presente e no futuro do país.
* Professor do Curso de Geografia da Universidade Federal de Campina Grande